Você sabe o que é freeride?.

Com alguma freqüência, tomo conhecimento de casos que revelam vícios arraigados à cultura dos brasileiros. Há algumas semanas, foram completados sete meses sem chuva em uma singela e pacata cidade do Nordeste, não me lembro agora de cabeça se situada no Maranhão ou no Piauí. Fiquei abismado com o recurso utilizado pelos moradores para tentar dirimir o grave problema, a saber, fazer uma novena, com todos aqueles rituais típicos. Um deles declarou que é o único recurso que possuem para matar a sede de dignidade. E eu digo que não, não é.

 

Essas pessoas resolveram sentar no comodismo da fé, e esperar com olhares resignados para o céu. Ainda estão na Idade Média, e acabaram por servir como atração exótica e melancólica em um noticiário, por mais irônico que isso pareça. Todos esses moradores não se dão ao trabalho de pensar que podem resolver o grave problema com as próprias mãos, e não somente levantá-las para o céu ditando sílabas e mais sílabas que tomam como sagradas.

 

Vejo na fala de muitos um discurso de vitória sobre o tempo, na medida em que boa parte das pessoas, ilusoriamente, se considera feliz ainda que entorpecidas em ignorância. O conhecimento se revela desperdício de esforço, desnecessário. Nada mais pernicioso.

 

Há uma inércia, uma falta de iniciativa, que é o espelho de grande parte dos que habitam em terras tupiniquins. Falta gana por mudança, uma insatisfação, um incomodo em ver que o caminho para alegrias está pouco iluminado. Mas para isso, o aprendizado se revela necessário. Em outras palavras, é preciso que criemos uma cultura de saber, uma vontade de conhecimento.

 

Os moradores desta cidade nordestina sequer pensam que está apenas ao alcance de suas próprias vontades melhorar a vida que levam, não enxergam que o caminho para alegrias pode ser muito melhor se contarem também consigo mesmos e não só com seus ídolos religiosos. O conhecimento nos permite mudar o mundo, vê-lo de maneira diferente, ver-nos de maneira diferente. Aprender suscita a reflexão. Passamos a questionar autoridades, a dispor de novas ferramentas, a buscar novos caminhos, e tudo o mais. A felicidade se torna, naturalmente, mais tangível.

Outro dia, na rádio onde faço estágio, afixaram na parede da sala de produção um papel com uma matéria sobre uma velhinha escocesa, se não me engano, que tinha cento e cinco anos e se declarava virgem. Na matéria, a velhota dizia que o segredo da longevidade é a abstinência sexual. Pois é, alguém foi lá e escreveu, com canetinha, na folha,

 

E você? Prefere viver ou durar?

 

Temos aí a dupla face da mesma moeda. Primeiro, percebe-se nossa consciência de morte, e como essa certeza dita nossas atitudes. Faça valer a pena, carpe diem, vida louca, e o que mais vier; segundo, digo que, mesmo que essa certeza se mostre às vezes opressiva, ela se faz necessária. A morte inventou a natureza.

 

Nós somos o tempo todo estimulados a participar de uma espécie de corrida contra o tempo. Queremos, a cada dia a menos que temos, ser mais felizes. Ou seja, buscamos ser cada vez mais rápidos, e assim poder aproveitar mais. É como se, quando nascêssemos, começássemos a acelerar, acelerar e acelerar. Quanto mais rápido, mais prazer. E lá no final está a linha de chegada, um muro invisível, posto pela morte.

 

Não sei se a velocidade influi no tempo de chegada, mas, pelo menos de acordo com a carcomida lá de cima, sim. Eu até acho que o muro também corre. Na verdade, só corremos assim porque sabemos que lá na frente há um muro invisível, não importa quanto tempo vai demorar para irmos de encontro a ele. Ainda que desejemos a remoção desse muro, ele é o nosso maior estímulo. Aceitemos isso ou não.

Sonhar demais pode ser um problema, mas especialmente porque esses sonhos invariavelmente não podem ser realizados se você quiser manter seu estilo de vida. Seu sonho talvez seja exatamente esse. De qualquer modo, mudar totalmente seus costumes, aquelas maneiras e aqueles hábitos que você tanto preza, para realizar um sonho é um sacrifício que, ainda que acompanhado de êxito, nem sempre vale a pena, não importa qual seja.

        

Eu tive que optar por um há quase três anos. Com dezessete anos e um vestibular à vista, resolvi fazer terceiro ano em outra cidade, Belo Horizonte, origem de toda minha família. Vim sozinho, mas só digo isso porque vai ser útil mais tarde. Para ser um bom jornalista, resolvi começar minha vida toda de novo.

        

Ficar longe da família não é necessariamente um problema, dependendo da forma com a qual você encara o andar da vida. O grande desafio é me refazer, rever meus gostos e costumes, ou seja, entrar em conflito com meus valores. Passar o dia inteiro com melhores amigos no clube, conversando à toa? Esqueça. Ficar até quatro da manhã na esquina da avenida mais movimentada da cidade em um lual regrado a cachaça ruim e refrigerante barato com esses mesmos amigos? Que dó. Ir a qualquer lugar da cidade com cinco minutos de bicicleta? É melhor nem lembrar.

        

O mais curioso de tudo é que esse fenômeno é, em alguma medida, natural. Você precisa se reinventar na medida das suas necessidades, é algo que o tempo cobra de você, batendo incessantemente na sua porta e dizendo para você deixar de ser um nostálgico idiota. Em se tratando de nostalgia, sou nem um projeto de Walter Benjamin. O que incomoda de verdade é ver aquilo em que você mais acredita, e que fez parte da sua vida desde sempre, simplesmente escorregar das suas mãos, e você precisar aceitar isso e se virar para ser feliz de alguma forma, ainda que sua felicidade esteja necessariamente atrelada aos benditos dos seus valores.

 

Tenho passado esses últimos três anos tentando me reinventar, talvez agregando novos valores. Mas tudo bem, o sacrifício se desfaz em poucas palavras, e o mundo parece totalmente diferente. Seu irmão tá indo praí, me avisa minha mãe por mensagem de celular, há mais ou menos um mês atrás. Vai seguir, portanto, o mesmo caminho. Ou talvez nem precise, pois viemos do mesmo lugar, e cultivamos os mesmos valores. Ao fim, me sinto banhado e envolto novamente por minha identidade, de alguma forma vou olhar nos olhos dele e ver muito mais do que apenas vários círculos concêntricos de cor negra. É o que eu construí para mim e para nós, e que vai me acompanhar, a partir de agora, bem mais de perto.

No final das contas, apenas a morte lembrará de alguma coisa. Nem o nosso tempo.

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